O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

quarta-feira, 27 de março de 2024

Mexeriqueira

Escultura de duas senhoras fofocando na cidade de Sindelfingen, na Alemanha.


          Mexeriqueira

Juliano Barreto Rodrigues

Valei-me, dona Micárdia!

Que com a mão na taramela

Arrulha rumo aos ditosos

Passantes na rua

 

Cheia de fofoquilhas e futriquices

Depositária dos alheios segredos

Que dessecreta

Tão logo os recebe.

 

Que não tem boca para guardar palavra

E faz circular na feira a vida vizinha

Acha feio a boca miúda

Prefere muito a de sacola.

 

Ave, língua ferina,

Ciciante atiçadora de brasa.

O que seria da vida dos sem-graça,

Se não fosse o se meter na vida alheia?



 

segunda-feira, 31 de julho de 2023

HORROR NO CORAJOSO


 

                                      Horror no corajoso


                                                                                                            Juliano Barreto Rodrigues


O medo no tutano do osso.

Fundo de poço sem fundo,

Que, de tão lá, não vem à luz.

Não comunica carne,

Não comunica nervo

Não comunica pele,

Nem comunica pelo.

Dói de abismo;

Mas de modo inconsciente,

Latente!

A boca nega;

O gesto repudia;

A face desmente.

Tudo no ato é coragem.

Tão mais espetaculosa e indômita,

Quanto maior o medo que cala.

Odisseu teve medo: escondeu!

Nero também teve;

E Vlad da Valáquia, o conde.

Assim, todos os corajosos da história.

Porque todo grande teme um maior.

Se não, teme o tempo,

Ou a si mesmo.

A veia biliosa do valente

Renega o medo dormente,

Que lá naquele filete medular

Se encerra.

Vez em quando

Um arrepio traidor,

Ou uma estranha onda de calor,

E vem o blefe:

“É aragem!”

“É mormaço!”

Na verdade, é humano!

Ou, antes, animálico!

Coragem só se cria

Onde há medo que preserve;

Só dura onde a precaução

é milimétrica.

Porque o sem-medo é l’oggi morto:

no primeiro embate peita o gume.

Isso é inscícia,

Não coragem.



TRAGEDUMBA



Disponível em: https://i0.wp.com/easysleephealth.com/wp-content/uploads/2021/02/Why-do-we-have-nightmares.jpg?resize=696%2C798&ssl=1


TRAGEDUMBA


                                                                 Juliano Barreto Rodrigues


Bam, bam...

Cabrum!


Latão

Tombou

Boc'aberta

Beir'abaixo.


Bem-bom

Derramou rastejando a rua 



segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Novela Pantanal: um olhar, à luz da crítica sobre a Indústria Cultural

 



Novela Pantanal: um olhar, à luz da crítica sobre a Indústria Cultural

 

Juliano Barreto Rodrigues.

 

A novela Pantanal foi exibida, pela primeira vez, em 1990, pela TV Manchete (extinta em 1999). Foi escrita por Benedito Ruy Barbosa e teve a direção geral de Jayme Monjardim. Contava, no elenco, com grandes atores globais e superou a Rede Globo em audiência no horário. Foi reprisada em 1991-1992 e em 1998-1999. Antes disso, em 1984, a Central Globo de Produções havia iniciado sua pré-produção, com o nome de Amor Pantaneiro, como novela das seis, mas o projeto foi descontinuado. Em 2006 a Rede Globo adquiriu os direitos sobre a obra e pretendia fazer uma adaptação em 2008, ano em que o SBT reprisou aquela primeira versão, superando novamente os índices de audiência da Rede Globo.

Já em 2020, a Rede Globo anunciou uma adaptação, da autoria de Bruno Barbosa Luperi (neto de Benedito Ruy Barbosa) a ser exibida em 2021. A pandemia de COVID-19 atrasou o lançamento para o ano de 2022.

Uma novela que merece um remake, com adaptação original, após 32 anos da primeira exibição (e que já foi reprisada com grandes índices de audiência outras vezes) é um grande sucesso da Indústria Cultural brasileira.

Theodor Adorno e Max Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento, cunharam a expressão “Indústria Cultural”, designativa da concepção de produção/reprodução em massa de bens culturais. A reprodutibilidade técnica[1] das obras artísticas, possível com a evolução tecnológica, fez com que saíssem da condição de obras únicas (de fruição limitada a poucos privilegiados que a elas tinham acesso) e alcançassem as massas. Indústria Cultural, na acepção da expressão dada por Adorno e Horkheimer, está baseada na reprodutibilidade dos bens culturais (agora produtos), voltados a um mercado consumidor (ao lucro). Esse mercado funciona como outro qualquer, onde atendem-se ou criam-se as demandas e os produtos para elas, a custo razoável para o público visado e garantindo altíssimos lucros para as corporações dessa indústria (sobre volume e segundo as leis capitalistas da oferta e da procura).

Entendendo a novela Pantanal como um produto cultural, muito lucrativo dentro da lógica da Indústria Cultural, produto que existe em função da possibilidade técnica de reprodução em massa pela televisão, que a atualiza agora em uma versão ambientada no pantanal contemporâneo, para alcançar também a identificação de um público que talvez ficasse excluído (acostumado às tecnologias, como internet, telefone celular, monitoramento virtual do agronegócio etc.), a nova versão da novela Pantanal figura como um objeto perfeito de estudo sobre algumas peculiaridades daquela indústria.

Primeiro, é preciso lembrar que, conforme Adorno e Horkheimer (1947, p. 64), “[...] a indústria cultural permanece a indústria da diversão”. E que nesse modelo de entretenimento, continua valendo aquela fórmula, de que falaram em 1947 – e que, talvez, tenha até se exacerbado e ficado mais explícita –, de que:

O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reacção: não por sua estrutura temática – que desmorona na medida em que exige o pensamento – mas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada. (ADORNO, HORKHEIMER, 1947, pp. 64-65).

 

Seguindo o paradigma de sucesso da primeira versão, que lançou a atriz Cristiane Oliveira ao estrelato na TV, através da personagem Juma, a nova Juma Marruá também é representada por uma atriz novata em televisão, jovem, branca, que atende aos padrões de beleza vigentes.

Visando o mesmo sucesso da primeira vez, é notório que se repetem, com exatidão, muitos pontos do que deu certo, o que revela também a atenção ao senso comum, tão caro à indústria cultural, que diz que “em time que está ganhando não se mexe”. É o caso, por exemplo, de colocar uma atriz estreante, com características bem próximas daquela que fez o papel anteriormente (inclusive o olhar felino), para representar a Juma; também o fato de utilizarem a mesma fazenda da primeira produção como locação; bem como trazer atores que atuaram na primeira versão para fazerem outros papéis etc. Não se pretende inovar no essencial, mas maquiar (lembre-se: é um remake) com novas cores a versão original, para tentar alcançar o mesmo sucesso de audiência que ela teve. Tudo é pensado a partir daquela “mentalidade-índice-de-audiência”, de que falava Bourdieu (1997, p. 37). Até as polêmicas e as tragédias da versão nova são, quase todas, revisitações modernizadas daquelas anteriores. Nesse ponto, sem inovar em nada em relação àquela educação censora implícita da indústria cultural (mecanismo de manipulação), “A simples existência de uma receita conhecida é suficiente para apaziguar o medo de que o trágico possa escapar ao controle” (ADORNO, HORKHEIMER, 1947, p. 72).

Assim, as polêmicas – abandono de recém-nascido, homofobia, relações incestuosas entre irmãos, infidelidade conjugal, o pacto com o diabo, o fantástico manifestado nas pessoas encantadas em animais, a riqueza legendária etc., têm, mesmo aquelas mais graves, soluções rápidas, que evitam que o trágico passe do ponto: Maria Marruá abandona Juma, rescém-nascida, dentro do barco no rio, mas logo em seguida, diante da ameaça do Véio do Rio, transformado em sucuri perto da criança, Maria a resgata; os irmãos Guta e Marcelo se encontram e se envolvem, se beijam, mas não chegam a se relacionar sexualmente, descobrindo logo que são irmãos (mais para a frente ficam sabendo que, na verdade, não são irmãos e, então, ficam juntos); o mordomo Zaqueu sofre homofobia na fazenda de José Leôncio e vai embora, mas, depois de alguns capítulos, em que o tema do preconceito é tratado pedagogicamente, retorna e é bem recebido por todos; nesse sentido, até Juventino, filho do “Rei do Gado”, José Leôncio, é inicialmente recepcionado pelos peões da fazenda do pai como “frozô” (é o tema pejorativo que usam), mas depois de suas aventuras amorosas e uma luta exemplar com um contendor armado de faca, é orgulhosamente tido pelo pai e pelos irmãos como muito homem; a infidelidade de Maria Bruaca é perfeitamente justificada pelo tratamento injusto que seu marido lhe confere e pela ideia de “chifre trocado”; o cramunhão de Trindade prevê as tragédias mas, em seguida, ajuda a dar soluções para elas (é mais anjo do que diabo); a riqueza absurda de José Leôncio é honesta e respeitadora incondicional da natureza; assim por diante. Até as mortes dos vilões se dão, quase sempre, por uma variante do deus ex machina: perseguidos, são comidos, antes de alcançados, por piranhas, ou por uma onça, ou pela sucuri. Ou caem de avião. Não há um espetáculo sádico, mas “[...] apenas um espetáculo inteligível”, como diria Barthes (2001, p. 16). Maria Marruá, Juma Marruá, o Véio do Rio, se transformam em animais quando estão com raiva e precisam agir violentamente; assim, é como se não fossem exatamente eles, mas animais, tendo comportamentos normais para animais. Nesta novela, não se sujam as mãos. E não se atacam as suscetibilidades dos espectadores (ou só o fazem minimamente, e corrigindo logo a seguir).

Falando novamente daquela briga de Juventino e Alcides, que aconteceu no casamento de Juventino com Juma, a peripécia é muito inverossímil: um peão ciumento puxa uma faca contra o noivo, no ambiente deste (desarmado, franzino, citadino), que está cercado por seus familiares (que andam sempre com armas de fogo ou facas), mas ninguém intervém nem para evitar que o ataque comece, nem para encerrá-lo. Quando o azarão vence, tentam justificar sua vitória impossível, dizendo que ele é um Leôncio, que estudou artes marciais na cidade, que Alcides estava muito bêbado. Até o fato de Maria Marruá, Juma e o Véio do Rio se transformarem em animais é mais coerente do que isso, dentro da proposta fantástica de certo núcleo da novela.

O maniqueísmo das personagens é quase geral: quem é bom é flagrantemente bom (mesmo que mate é por justiça, como o Véio do Rio que, na forma da sucuri engole o homem que queria exterminar Gil e Maria Marruá, pais de Juma), quem é ruim chega a ser quase caricato. É um recurso que facilita imensamente a percepção do público, que não precisa raciocinar sobre possíveis intensões veladas, nem ler nas entrelinhas qualquer coisa. Tudo é dado, inequívoco, professoral (o Véio do Rio, o cramunhão, Eugênio chalaneiro, às vezes funcionam como se fossem narradores oniscientes, prevendo, sugerindo, explicando e justificando em palavras, os acontecimentos e os atos das personagens).

A música, a fartura da mesa, as paisagens paradisíacas do pantanal, a fala característica, são personagens inumanos constantes em todos os capítulos. São “respiros” de deslumbramento a encher os olhos e ouvidos de espectadores neste Brasil em crise e satisfazem as necessidades estéticas e de demarcação simbólica da obra. Esta imagem está sendo vendida (especialmente o apelo ecológico) para vários países, como o Uruguai, Colômbia, Chile, Argentina, Eslovênia, Venezuela, entre outros, que já adquiriram direitos de exibição da novela ou estão em processo de negociação.

Chamam a atenção as propagandas explícitas de produtos - estéticos, de limpeza etc., até aplicativo de meditação -, cujas aparições não se limitam a algum close em cena, mas têm comentários das próprias personagens, um recurso excessivo, grosseiro, quem nem disfarça a intenção de atingir “consumidores”. É de imaginar como os telespectadores de outros países receberão mal este artifício (caso não cortem as propagandas).

Uma análise mais detida apontaria muito mais coisas meio óbvias, como as comentadas, até aqui, em uma segunda camada de leitura. E, talvez, também sutilezas (se é que há) mais artísticas e filosóficas. A novela Pantanal é um retumbante exemplo de “produto” para uma cultura de massas, que atende perfeitamente aos padrões de escala industrial da indústria que a criou. Foi feita, nos mínimos detalhes, para ser campeã de audiência e para ser reproduzida em outros países. É uma bela peça de mercado.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. (1985), Dialética do Esclarecimento. Fragmentos Filosóficos. 1947. (Dialektik der Aufklärung – Philosophische Fragmente). Theodor W. Adorno. &. Max Horkheimer. 24 páginas. Disponível em: < https://www.netmundi.org/home/wp-content/uploads/2014/04/Adorno-e-Horkheimer-A-ind%C3%BAstria-cultural.pdf>. Acessado em: 29 jun. 2022.

BARTHES, Roland. Mitologias; tradução de Rita Buongerminto e Pedro de Souza. – 11ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BENJAMIN, W.  A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. In: GRÜNEWALD, J. L. (trad. e org.). A Ideia do Cinema: Ensaios de Walter Benjamin, Eisenstein, Godard, Merleau-Ponty. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. pp. 165-196. Disponível em: <http://www.hrenatoh.net/curso/artetec/txt_benjamin.pdf>. Acessado em 29 jun. 2022.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão / Pierre Bourdieu; tradução, Maria Lúcia Machado. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.



[1] Cf. A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, de Walter Benjamim (vide Bibliografia).



quinta-feira, 30 de junho de 2022

Indústria Cultural

 


INDÚSTRIA CULTURAL

 

Juliano Barreto Rodrigues

 

As leituras de Adorno e Horkheimer (1985), Marx (2011) e Benjamin (1969), suscitaram as seguintes reflexões, acerca da Indústria Cultural:

 

Theodor Adorno e Max Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento, cunharam a expressão “Indústria Cultural”, designativa da concepção de produção/reprodução em massa (característica do sistema fabril-industrial capitalista) de bens culturais. A reprodutibilidade técnica das obras artísticas, possível com a evolução tecnológica, fez com que saíssem da condição de obras únicas (de fruição limitada a poucos privilegiados que a elas tinham acesso) e alcançassem as massas. Isso operou mudanças radicais: seguindo a lógica da produção em série, violou a lógica da exclusividade, tornando aquilo que tinha valor “imaterial” em produto livremente comercializável, com valor de coisa (reificação) segundo a lógica capitalista; também afetou a “aura” do original artístico; além disso, naturalizou (ou desmistificou) pela democratização do acesso, a arte e a criação artística, objetificando a obra de arte (obra do espírito) e o artista, que foi se tornando, historicamente, em um trabalhador, que precisa atender as demandas de um mercado baseado na reprodução em escala industrial das criações.

 

Segundo essa lógica, da produção capitalista, a cópia do objeto de arte é acessível a quem pode pagar (os preços são muito mais baixos do que da obra original) e, para os responsáveis pela alimentação desse mercado da reprodução, é possível criar demandas, seja educando/direcionando o gosto coletivo, fomentando modismos, da mesma maneira que também é possível controlar a própria produção artística, já que a arte válida será aquela que seguir certos padrões de mercado (se um determinado estilo vende, o artista que se preze será aquele que cria conforme aquele estilo, desviando-se minimamente, só até onde a própria indústria cultural veja margem para fomentar novas demandas de consumo).

 

Indústria Cultural, na acepção da expressão dada por Adorno e Horkheimer, está baseada na reprodutibilidade dos bens culturais (agora produtos), voltados a um mercado consumidor (ao lucro). Esse mercado funciona como outro qualquer, onde atendem-se ou criam-se as demandas e os produtos para elas, a custo razoável para o público visado e garantindo altíssimos lucros para as corporações dessa indústria (sobre volume e segundo as leis capitalistas da oferta e da procura).

 

Em lugar daquela concepção de arte como “rasgo do espírito”, maneira do ser humano alcançar a Deus, a perfeição, surgiu uma ideia diferente, de arte como produto, que precisa ampliar seu mercado, seu público, precisa ser consumida, precisa atingir o máximo de pessoas possível. Para isso, em vez seguir rumo àquela “elevação” (daquela concepção de arte anterior à era da reprodutibilidade técnica), a arte foi para o rumo contrário, foi se aproximando da terra, se humanizando, ao ponto de se aproximar cada vez mais da realidade rotineira das pessoas (talvez por isso a autoficção, por exemplo, seja o gênero mais em voga). As personagens e lugares dos livros, dos quadros, dos filmes, se parecem com as pessoas e paisagens comuns, porque os consumidores têm que se identificar com eles. A desempedestalização da arte, rumo ao vulgo, popularizou-a e tornou-a menor em certo sentido, fez do artista um trabalhador e da sua obra um produto a satisfazer o senso comum (para ser consumida).

 

Fala-se muito da fotografia como representação do início do processo de reprodutibilidade que abriu caminho para a indústria cultural, que alcançou seu ápice com o cinema e a televisão. No entanto, a prensa de tipos móveis, muito anterior, é verdadeira precursora dessa Indústria Cultural. Talvez não seja tão referida porque anterior à Revolução Industrial. Mas imagine: até a Bíblia era reproduzida antes por copistas e, nesse processo artesanal, com iluminuras etc., cada volume era uma obra de arte a parte, caríssima, escassa e, portanto destinada a pouquíssimos (até porque era escrita, originalmente, em hebraico, aramaico e grego). Com a prensa de Gutenberg e as traduções para a vulgata latina, o acesso se popularizou enormemente. A igreja inicialmente reagiu, porque queria manter sua exclusividade na divulgação e interpretação da “palavra”, mas depois se adaptou, passando inclusive a rezar missas na língua dos fiéis. Com o aumento da alfabetização, da publicação de panfletos e livros, um mercado se formou - só possível por uma tecnologia de reprodução industrial e venda - e muitos o usaram para educar as massas conforme alguma ideologia.

 

De lá para cá, com o crescimento da Indústria Cultural, observa-se que a imposição coletiva e massiva dos bens culturais, feita de um modo que todos consumam os mesmos bens, tenham os mesmos desejos, reproduzam a mesma forma de pensar, gerou um processo de alienação em massa (a luz que ilumina é em excesso a luz que cega), onde as pessoas são iguais até em suas diferenças (e esta sociedade expurga os outsiders).

 

Conforme Adorno e Horkheimer disseram, em 1947,

 

A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis. Liberal, o telefone permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel do sujeito. Democrático, o rádio transforma-os a todos igualmente em ouvintes, para entregá-los autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações. Não se desenvolveu nenhum dispositivo de réplica e as emissões privadas são submetidas ao controle. (ADORNO, HORKHEIMER, 1947, p. 57).

 

Hoje, a realidade é um pouco diferente e esse domínio quase absoluto da Indústria Cultural parece estar sendo posto em xeque. Com o surgimento da internet, com as possibilidades de comunicação social via rede mundial de computadores, quase todo mundo se tornou protagonista, não só replicando, mas produzindo informação. Em um processo tecnologicamente democrático, há uma disseminação não controlada (ou menos controlada) e descentralizada de dados, opiniões, com a criação de demandas de forma mais ou menos caótica. Valorizam-se os nichos, que vivem e crescem paralelamente ao padronizado. Fala-se em mercados, no plural, em públicos, também no plural. O movimento de contração e centralização anterior, parece ter dado lugar à dispersão e descentralização.

 

Antes, por exemplo, o mercado editorial controlava, quase exclusivamente, a literatura que era publicada. Mas surgiram blogs, ferramentas de autopublicação, comunidades alternativas de leitores e escritores. Também surgiram resenhistas e “vlogs” que tiraram das instituições (academia, jornais, meios literários “oficiais” e outros meios autorizados) a exclusividade da formação de opinião e eleição do que deveria ou não ser lido e escrito.

 

Os representantes da Indústria Cultural ditam, cada vez menos exclusivamente, a produção artística. Mas se adaptaram (ou criaram, eles mesmos, uma nova realidade?): como tudo circula nas redes e é indexável, contabilizável, analisável (a adesão a qualquer coisa ou pessoa é verificável; o número de seguidores e likes é dado revelado etc.), essa Indústria tem à disposição um instrumento de pesquisa, atualizado em tempo real, acerca de todas as tendências em qualquer campo que lhe interesse. E isso lhe permite entrar e aproveitar cada variação, cada nicho de mercado, trazendo para si o que tem público consumidor (tornando, por exemplo, aquele autor de blog, com 100.000 seguidores, alguém do seu catálogo, ou então publicando coisas parecidas com as que ele produziu etc.). Nota-se, portanto, que a Indústria Cultural não está em crise nem perdeu o seu poder. Continua a controlar, mas de forma mais invisível (aparentemente colaborativa e menos impositiva), o que se “consome” de arte e cultura. Agora, pelo menos, qualquer artista tem voz e espaço para divulgar sua arte e alcançar algum público. A Indústria cultural é co-criada, não dá as cartas sozinha. Mas não se engane, está maior do que nunca.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. (1985), Dialética do Esclarecimento. Fragmentos Filosóficos. 1947. (Dialektik der Aufklärung – Philosophische Fragmente). Theodor W. Adorno. &. Max Horkheimer. 24 páginas. Disponível em: < https://www.netmundi.org/home/wp-content/uploads/2014/04/Adorno-e-Horkheimer-A-ind%C3%BAstria-cultural.pdf>. Acessado em: 29 jun. 2022.

MARX, Karl. O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo. In: O Capital. Vol I. São Paulo : Boitempo, 2011. pp. 204-218. Disponível em: <https://www.gepec.ufscar.br/publicacoes/livros-e-colecoes/marx-e-engels/o-capital-livro-1.pdf/view>. Acessado em 30 jun. 2022.

BENJAMIN, W.  A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. In: GRÜNEWALD, J. L. (trad. e org.). A Ideia do Cinema: Ensaios de Walter Benjamin, Eisenstein, Godard, Merleau-Ponty. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. pp. 165-196. Disponível em: <http://www.hrenatoh.net/curso/artetec/txt_benjamin.pdf>. Acessado em 29 jun. 2022.

 


sábado, 29 de janeiro de 2022

Almo Caniço

 

Pam Herrick Prophetic Art


ALMO CANIÇO

 

Juliano Barreto Rodrigues

 

Maria estava cravada junto ao batente da janela. Mas tão fixada que fazia par perfeito com aquele prego, vincado de velho, na folha canhota da ventana. “Barbaridad, que susto me meteste guria, parece uma assombração... aí estacando o olho desta sala”, disse o antiquíssimo patriarca (desgrenhado e vestido só de calçolão).

Jonísio passava dos anos banguelas, era ancião demais, experiente em vida mais que todo mundo. Mas os olhos ilegíveis da menina, mal’entrada na caminhada, pareciam ver dentro dele – e eram dois dedos rijíssimos, feito chifres, apontados no meio das suas memórias, a remexê-las desabusadamente, feito soro da verdade. [Seria ela algo, feito um demônio pessoal, a cobrar-me pelo tudo?] – pensava consigo o velho muito velho. Mas temia que ela lhe lê-se os pensamentos.

[Que fiz eu para essa guria, que desde o berço me julga sem dizer qualquer palavra?] – o coração se agigantando em incorreções. Mereja um suorzinho em meio às mil rugas. [Valei-me, meu São José Gabriel del Rosario, que eu já nem tenho idade para ter alguma fé. Mas afastai aqueles olhos encostados que me ardem. São meu suplício exculpante pré-purgatório?]. “Humm!” [E eu, que não matei, não roubei, até aqui não fui muito nem fui pouco, peso o quê, na Balança? Omissão conta? Coração seco conta?]. “Vá fazer alguma coisa, Melissa.” [O diabo da menina nem se mexe. Pergunto o que quer de mim? Eu sei que ela sabe de tudo, que martírio!]. “Não vê que estou... hã... fazendo uma coisa importante? Vai-te daqui, anda!”

Sopra um vento vesgo, encruzando porta-janela. O mais antigo de todos os homens mais velhos do mundo senta seus ossos na poltrona XV desgastada. Pede a morte, que passou, se esqueceu dele há muuuito tempo. Que fez ele da vida? Da própria e da alheia? [Fiz tanto de “um tudo” e outro tanto de nada, de sorte que, pensando bem, fiz qualquer coisa que valha?] – cofia barbaramente a barba cega enquanto mói e remói, e remói, e remói.

[Não reconheço os meus pés. Não lembro de ter pés assim. Una pana delgada cobre minha pele. Ninguém do meu tempo de nascido chegou até aqui; o que foi feito de mim? Não sei por que fiquei. E aquela menina que estava ali, espetada na ombreira da janela? Parece que me lembro, mas foi há tanto, mas tanto, tempo... Ela me dói cada folha velha que existe em mim. Dói-me culpa por não entendê-la. Dói-me a faca dos seus olhos. Dói-me a vitória que ela carrega(va?). Mas o que há, vovô? Recorda! Vai, recorda! Ai, ai, lembrei!, ou entendi: Eu, vivo, estou morto. Ela, morta, vive e mim].


***





ESTATUTO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL NO CONTEXTO DAS ARTES EM GERAL

 

Criança lendo. De Sally Rosembaum


Estatuto da Literatura Infanto-Juvenil no contexto das artes em geral

 

“A literatura infantil são os livros que aparecem nos catálogos de livros para crianças”. (SORIANO, 1975, apud COLOMER, 2003, pp. 50-51).

 

Colomer (2003, p. 42) se refere a Shavit (1986) para constatar que a Literatura Infanto-Juvenil se desenvolveu alimentada pela ideia de função literária e de função educativa. Inicialmente se discutiu (1) se os livros infanto-juvenis deveriam ser considerados verdadeiramente literatura e, (2) para o âmbito dessa análise, se os objetos de discussão crítica deveriam ser as obras reconhecidas e legitimadas por sua qualidade  literára ou, por outro viés (mas não necessáriamente oposto), aquelas que tinham sucesso de público. Em seguida, (3) o debate chegou à definição da Literatura Infanto-Juvenil como “[...] um campo específico no interior do sistema de comunicação literária [...]” (COLOMER, 2003, p. 43).

Naquela discussão sobre os livros infanto-juvenis poderem, ou não, ser considerados literatura – apresentando aquelas características distintivas da literatura para adultos – várias autoridades (literatos, estudiosos etc.) diziam que não. Nesse sentido, COLOMER (2003) colacionou opiniões de Benedetto Croce, de Sánchez Ferlosio, de Rico de Alba. Ocorre que, nos anos 60 do século XX, os formalistas russos, criando elementos para uma ciência literária, focaram na função poética da linguagem para definir o que era literatura (função essa que diferencia certos textos de outras expressões linguísticas). Assim, identificada a “literariedade” da linguagem naqueles textos considerados voltados para o público infanto-juvenil, foram considerados literatura, mas uma literatura menor (por se desviar menos da norma demarcatória do texto não literário).

Na tentativa dos críticos e autores de livros infantis, no sentido de mudar a ideia de que se tratava de uma literatura menor, passaram a apontar marcas daquela literariedade (presente na literatura para adultos) também nos textos para crianças e adolescentes e, o que se provou ainda mais importante depois, mostrar marcas específicas de literariedade linguística nestes textos (que não ocorriam na literatura para adultos). Porém, aceitar essa distinção, significava ter que adotar critérios e procedimentos diferentes para produzir e para avaliar as obras consideradas de Literatura Infanto-Juvenil, o que causou (e ainda causa) muita resistência no meio (Cf. COLOMER, 2003, p. 45). Necessitou-se definir teoricamente os termos desse objeto. Nesse sentido,

[...] Explicitar os critérios pelos quais se avaliam as obras infantis torna-se imprescindível para poder ir além dos supostos pelos diferentes grupos sobre o que é conveniente para a infância e a adolescência, inclusive, com frequência, além do débil guia daquilo que os adultos recordam ter lido na sua própria infância. (COLOMER, 2003, p. 46).

 

Existia, e ainda existe, no que diz respeito aos critérios definidores do valor literário, a tensão entre a avaliação crítica do texto (pelo que é o texto, observadas as convenções do gênero) e a consideração do leitor (maior ou menor alcance e aceitação da obra). Historicamente, a balança já pendeu tanto para um quanto para o outro lado, ora priorizando a qualidade do texto em si, ora centrando-se mais no leitor. Há, hoje, um movimento no sentido de valorizar a união dos dois critérios.

Sendo assim, hoje trata-se a Literatura Infanto-Juvenil como um campo específico, que se busca estudar equilibrando a atenção no texto e no leitor. Entendida como forma de comunicação literária, o objetivo do estudo da Literatura Infanto-Juvenil é, segundo Soriano (1985, apud COLOMER, p. 52), “[...] o diálogo que, de uma época para outra, de uma sociedade para outra, se estabelece entre as crianças e os adultos por meio da literatura.”

A classificação da Literatura Infanto-Juvenil como “gênero”, também gerou polêmica, haja vista a existência de gêneros, na terminologia literária, como romance, conto, crônica, poema etc., que também são formas de realização na própria Literatura Infanto-Juvenil. Mas há também quem defenda a definição naqueles termos e sob o critério de categorização diferente.

Também registrou-se polêmica no que diz respeito à ficção fantástica e a realista, porque muitos críticos consideravam que a fantasia – vinculada à tradição oral popular (folclore, contos populares, contos de fada etc.) – seria uma forma menor, que só caberia para os povos primitivos e para as crianças, situação que mudou enormemente com a valorização da ficção fantástica pelos adultos. Por outro lado, também passou a ser bem comum a literatura ficcional realista voltada para crianças e adolescentes. Também houve, após a publicação de estudos da Psicologia, uma revalorização da fantasia, graças ao reconhecimento de sua conveniência como instrumento pedagógico e de cultivo do imaginário. Vale destacar, no entanto, que no meio literário,

A reutilização dos modelos folclóricos [incluam-se os contos de fadas, as narrativas populares] teve também seus detratores. Para alguns autores [...], o novo desenvolvimento da fantasia produziu apenas “obras menores, pastiches sem encanto; adota-se voluntariamente o estilo do conto para explicar qualquer coisa às crianças”. (COLOMER, 2003, p. 72).

 

Colomer (2003, pp. 72-73) informa que, a partir da Segunda Guerra Mundial, a qual sobreveio uma tendência antiautoritária no campo da produção literária, houveram tentativas de definição da Literatura Infantil que reconciliaram suas funções pedagógicas e literárias, bem como levaram à crescente revalorização da ficção fantástica e da importância do leitor em relação a obra.

Quem é esse leitor a quem a Literatura Infanto-Juvenil se dirige? Como destaca Palo (2006, p. 1), “O tema literatura infantil leva-nos de imediato à reflexão acerca do que seja esse ‘infantil’ como qualificativo especificador de determinada espécie dentro de uma categoria mais ampla e geral do fenômeno literário.” A criança é, segundo tal autora, uma minoria que, no Ocidente, não tem direito a voz nem qualquer autonomia no seu desenvolvimento, uma minoria submissa (dominados), guiada pela autoridade dos adultos (dominadores), situação corroborada pela Psicologia da Aprendizagem, que indica fases de maturação psicológica das crianças, justificando a dependência “natural” delas em relação aos adultos, na etapa de formação. Outra justificativa é a falta de domínio que as crianças têm do código verbal, para significar padronizadamente o mundo à sua volta e nele influir eficientemente, através da comunicação.

Palo (2006) defende que a falta de competências abstratas das crianças são compensadas por aquilo que ela designa como “concretitude” da experiência e da mente infantil. E que essa característica é muito interessante pedagogicamente, além de não ser contrária à fruição estética nem, portanto, à fruição literária (tomando-se literatura como arte). Destaca a importância da Pedagogia no processo de:

[...] adequar o literário às fases do raciocínio infantil, e o livro, como mais um produto através do qual os valores sociais passam a ser veiculados, de modo a criar para a mente da criança hábitos associativos que aproximam as situações imaginárias vividas na ficção a conceitos, comportamentos e crenças desejados na vida prática, com base na verossimilhança que os vincula. (PALO, 2006, p. 2).

 

Destaca que, a criança (não vista como um “adulto em miniatura”) tem, na sua mente intintiva e pré-lógica, a capacidade de descobrir correspondências e operar sinestesias através não da representação, mas da “presentação” das coisas, como ocorre na arte, motivo pelo qual a criança consegue responder ao signo artístico (literário, inclusive). Afirma que, na produção da Literatura ficcional, há “a dominante poética nos textos [...] um espaço onde equivalências e paralelismos dominam, regidos por um princípio de organização basicamente analógico, que opera por semelhanças entre os elementos. Espaço no qual a linguagem informa, antes de tudo, sobre si mesma.” (PALO, 2006, p. 5). Esse modo (linguagem universal da arte) favorece a liberdade do imaginário, da experimentação e da descoberta, que preponderam nas crianças e, portanto, cabe para elas.

Palo (2006) volta a tratar da função utilitário-pedagógica da literatura, a qual contrapõe a função poética, que “põe em crise qualquer previsibilidade de uso frente à alta taxa de imprevisibilidade da mensagem” (PALO, 2006, p. 7). Destaca que, ao contrário do uso passivo da informação, na segunda hipótese, a mente do receptor age efetivamente e de forma mais independente: criando, reconstruindo, no próprio ato da leitura. Diz que, privilegiar esta utilização (que considera acertada) é lançar mão de uma pedagogia mais centrada no aprender (per si), a partir do “fluir e refluir do texto”, do que no ensinar (da forma entendida tradicionalmente).

 

PONDERAÇÕES PESSOAIS

 

Considero que a Literatura Infanto-Juvenil tem mesmo uma função educativa, lastreada, mais comumente, na exemplaridade. Textos escritos para crianças possuem, na sua quase totalidade, conteúdo moralizante e educativo. Mesmo aqueles que, não tendo sido escritos originalmente para crianças, só as alcançaram – pelas mãos de adultos, como destaca Palo (2006) – porque têm algum conteúdo utilitário-pedagógico ou, na hipótese de exceção, porque ao menos não têm elementos “deseducativos” ou considerados “inadequados”. Isso corrobora a conclusão de que a Literatura Infanto-Juvenil ainda tem, como requisito, função educativa. Mas não há que se discutir que existem, como também no caso da literatura para adultos, livros com maior ou menor “literariedade”. Sendo assim, em ambos os casos, há aqueles que serão considerados “arte” e terão qualidade reconhecida, outros não. Mas é lógico que os critérios críticos devem levar em conta as diferenças de escrita para um e outro público. Daí se conclui, já que devendo critérios diversos de avaliação, que creio na Literatura Infantil como relativamente autônoma.

Como adepto da ideia de arte pela arte, e da arte como algo que não deve ter utilidade (em sentido estrito) óbvia, já me debati (combati) muito com a questão da leitura de ficção ter uma função. Criticamente, a exceção à regra da liberdade quase absoluta da criação artística (porque até a arte que subverte o faz dentro de alguns limites do thesaurus do gênero escolhido) – que defendo – diz respeito à Literatura Infanto-Juvenil. Esta sim, considero que deve ter função. Mas também acredito que, como expôs Palo (2006), a função poética da linguagem literária, sua forma, também provoca o desenvolvimento sensível e intelectual da criança (aliás, de qualquer leitor, de qualquer idade), despertando um aprendizado por elaborações subjetivas mais profundas e intuitivas, não apenas racionais.

Quando escolho um livro para uma criança não decido apenas pela informação. Procuro sempre aquela linguagem que escapa um pouco da norma meramente comunicacional, procuro algo que cause um “efeito” a partir da própria composição artística das frases, que apresente elemento estético, que ajude a própria criança formar o gosto (em oposição à expressão mais usada “educar o gosto”).

Para além disso, também considero que a literatura fantástica dê uma margem muito maior de liberdade para a imaginação infantil do que a ficção realista. As fábulas, contos de fadas, histórias maravilhosas da tradição oral... educam de uma maneira mais genérica, lúdica, encantadora e mágica. Prefiro!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

COLOMER, Teresa. “Os debates teóricos até os anos oitenta”. In: COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual. Tradução de Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2003.

 

PALO, Maria José e OLIVEIRA, Maria Rosa D. “A literatura e o literário infantil”. In: PALO, Maria José e OLIVEIRA, Maria Rosa D. Literatura infantil: voz da criança. São Paulo: Ática, 2006.

 



quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Samba-lamento de vagalhão

"Mar Revolto" (Héctor Molina, 2007), óleo sobre tela



 

SAMBA-LAMENTO DE VAGALHÃO


Juliano Barreto Rodrigues


O veleiro de vela acesa no mar

Faz, marujo, um par de vela a velar

Pescador que saiu pr’oceano a lançar

E que nun..., nunca mais vai voltar

 

A sereia fisgou, cantando ao luar

Navegante que fez do mar o seu lar

Que na vaga largou do timão

E encantado perdeu pra onda a razão

 

Enterrado na água turva um irmão

Pescantins choram seus próprios destinos

Lembram que com o mar não se brinca

Qu’ele é bicho de mil desatinos

 

Vira-mundo, que faz o vento virar

Gira a roda, toca o barc’a balançar

Pescador encontrou seu destino

Lá no fundo, lá no fundo, do mar

 

“Ciranda, cirandinha,

Vamos todos cirandar

Vamos dar a meia volta

Volta e meia vamos dar”

 

Mund’a giraaar...!




domingo, 21 de novembro de 2021

ELEMENTOS SURREALISTAS EM “MACUNAÍMA”, DE MÁRIO DE ANDRADE




 

ELEMENTOS SURREALISTAS EM "MACUNAÍMA", DE MÁRIO DE ANDRADE


Juliano Barreto Rodrigues


Macunaíma é um Trickster, uma figura mitológica que prega peças ou, fora isso, desobedece regras e normas de comportamento. É o embusteiro, trapaceiro, pregador de peças; É o Iktomi, dos Lacota; ou o Dokkaebi, da Coréia do Sul; o ah-zuh-bahn da Nova Inglaterra; algumas representações do Exú africano; ou seja, um ser arquetípico, o “malandro” em várias tradições culturais.

É o anti-herói, que, como diz o antropólogo Renato da Silva Queiroz, na página 94 do seu artigo O herói-trapaceiro. Reflexões sobre a figura do trickster, é um ser cuja trajetória “é pautada pela sucessão de boas e más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os, despertando-lhes, por consequência, sentimentos de admiração e respeito, por um lado, e de indignação e temor, por outro.”

Como ser que quebra as regras dos deuses ou da natureza, normalmente com um “truque” (daí o termo “trikster”), é um personagem que se presta perfeitamente aos aspectos oníricos e de livre imaginação do surrealismo. É um ser que pode se transformar em outro ou em qualquer coisa, transgredir regras de tempo, espaço, moralidade, pode ser experto e tolo, e quase sempre está ligado às artimanhas da linguagem. É o próprio poder da imaginação personificada.

Em Macunaíma, de Mário de Andrade, há aquela aparente valorização do improviso e da espontaneidade no manejo da linguagem, que caracterizou o dadaísmo. E, no caso específico, percebe-se mais do que traços daquilo que Santos e Souza dizem, no artigo As vanguardas européias e o modernismo brasileiro e as correspondências entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira, que:

Os surrealistas exploraram as relações da linguagem e da arte com o inconsciente, os sonhos e a técnica da escritura automática, que consiste em escrever sem pensar, sob o fluxo de um impulso de extrema espontaneidade e entrega interior ao processo da ligação entre linguagem e forças inconscientes. (SANTOS; SOUZA, 2009, p. 793).

Não acho que Macunaíma chegue ao ponto de ter sido escrito utilizando uma escrita automática, porque tem estrutura, um enredo claro, que limita um pouco a liberdade total, ou quase total, surrealista. Mas o personagem Macunaíma se transforma, cresce, decresce, vira planta, passeia, num átimo, de um ponto a outro do Brasil, faz coisas que se enquadram no “maravilhoso”, que André Breton tanto exaltou no Manifesto Surrealista de 1924.

Nos curtas Um cão andaluz, de Luis Buñuel e Destino, de Salvador Dali e Walt Disney,  a impressão de falta de controle lógico, de plasticidade dos sonhos, fica bem evidente. Embora exista uma sucessão de acontecimentos, a surpresas das mudanças inesperadas fazem reconhecer que o universo de que se trata ali está longe da realidade, só toca nela. E é muito interessante que a arte possa representar isso.

Macunaíma vai na mesma esteira, embora aparentemente seja um pouco mais estruturado. Mas, como nos vídeos citados, ele se transforma, uma hora está em um lugar, daí a pouco está em outro, assumindo outra forma, encontra seres mitológicos etc.  A vantagem literária, em relação aos vídeos, é que as intenções do personagem principal são mais claras, a narrativa nos aproxima mais dele, não ficamos tão ligados somente a “cenas” fluidas e mutantes, como no caso do curta “Destino”, nem somente ao absurdo sensível, no caso de “Um cão andaluz”.

 

REFERÊNCIAS

QUEIROZ, Renato da Silva (1991). O herói-trapaceiro. Reflexões sobre a figura do trickster. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP. 3 (1-2). p. 93-107.

SANTOS, Paula Cristina Guidelli do; SOUZA, Adalberto de Oliveira. As vanguardas européias e o modernismo brasileiro e as correspondências entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira. In: CELLI – COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 789-798. 


Um perro andaluz Luis Buñuel 1929

https://youtu.be/vNJwPrAxkB4

 

Salvador Dali y Walt Disney – Destino

https://youtu.be/w38cerphic4

 


 

Análise do poema "Poética", de Manuel Bandeira

 


Clique no link de podcast abaixo;


Análise do poema "Poética", de Manuel Bandeira




Um exercício de escrita

 O exercício consistia em, a partir do início da segunda frase ("Mais perto, Mariana"...) do texto abaixo, construir um parágrafo inteiro. O texto de base era o seguinte:


O parágrafo que criei, tomando as orientações por base, foi este (que me parece um miniconto):


DESMEDIDA


Juliano Barreto Rodrigues


A casa da estância, vista da porteira, parece menor do que é. Mais de perto, Mariana se  intimida com sua imponência úmida. Sobe, devagarinho, as escadas de pedras gastas do alpendre, pega na maçaneta azinhavrada do pórtico enorme, gira e põe só um olho para dentro. Lagartixa-se para o interior, achatada, gélida de medo. O cheiro de mofo, o pretume subindo as paredes, a luzinha lúgubre escorrendo das três telhas quebradas. É uma casa morta, apodrecendo sozinha. Nem ratos; nem fantasmas sequer. Dois gobelinos manchados despencam das paredes daquele salão de estar. Ali havia um piano, se lembra. Um candelabro luminoso dourava todo o espaço. O solar era o orgulho do casal Andrada. Pena Mariana ter ido embora fugida: o pai morreu de saudade, a mãe de desgosto. A estância? De ausência! Por que Mariana voltou agora? Para constatar que sua alma virou espelho da casa? 



Chapéu-tento


 

CHAPÉU-TENTO


Juliano Barreto Rodrigues


Sonhei com um tento de jogo, nas mãos de um moleque faceiro. Mãe preta ralhava com ele, mas ele fazia um piseiro. Explicava, disfarçando uma risota, que da arte não tinha culpa. 

-- Quem mandou, a cada gente, ter dois olhos nuã só cuca? O que um olho vê, às vezes outro não vê; e o olho que engana, com o outro não se desculpa.

Disse que ia por um caminho... e na encruzilhada parou. Brincava seu cachimbinho, quando a parelha de burros passou: 

-- Eram dois amigos: um passou de lá outro de cá. Que tenho eu, senhora, da amizade disandá?

-- Te conheço arrelia, alguma você aprontou. Tá aí fazendo figa, galhofando da sua amiga.

-- Ouvi eles brigarem, foi por causa do meu chapéu, que só por ter duas cores, provocou todo escarcéu. Tenho culpa não, nhá-nhá. Que quando um passou à direita, o outro passou do lado de lá. Cada um viu uma cor, e deram de se estranhar. Segui os dois bocós e vi o que assucedeu: Um falou do meu chapéu preto, o outro disse que era vermelho. Este acusou aquele de bêbado, virou o valha-me Deus.

-- E você não socorreu?

-- Mas se os dois tavam mentindo? Meu chapéu nem era preto, nem vermelho era o chapéu meu. Era feito este tentinho aqui: Cada lado de uma cor. Lindo, bicudo e bicolor.

-- Tu é um azougue menino, vive de molecagem. Passe pra dentro agora, e deixe de vadiagem. E dê-me aqui o meu tento, que inspirou sua cabeça de vento.



Lição de tento


 

LIÇÃO DE TENTO


Juliano Barreto Rodrigues


A tia velha, benzedeira de descendência nagô, sentada naquela cadeirona de pau, ia apontando as coisas penduradas na parede, calada de azul clarinho. Tamborilava o chão com os chinelinhos e cruzava as mãos de unhas grandes, esmaltadas de lilás. Casa de feiticeira tem perfume de defumador misturado com cheiro de mato e vinho. Perguntei, curioso que só, o que era aquele colar de ‘tento’ perto da porta. Ela riu, maliciosa, acho que alegre com minha esperteza, e disse: “‘Tento’ é coisa de jogador, de blefeiro, de gente alegre que gosta de brincar, mas com quem é bom ter cuidado, pra não ser passado pra trás”. Eu então indaguei como ela iria jogar com os ‘tentos’ se eles estavam amarrados. Aí ela deu uma gargalhada, daquelas dos olhos ficarem apertadinhos por trás dos óculos enormes, e me deu uma lição da ciência ancestral africana: “Aquilo é um colar de Exú, menino. Sabe por que é preto e vermelho? Pois vou lhe contar. Exú gostava de aprontar das suas, então botou um gorro que era uma metade preta e a outra vermelha e saiu para a estrada. Passou à direita de um homem e o cumprimentou. Passou à esquerda de outro, que vinha um pouco atrás, e cumprimentou também. Daí, seguiu os dois, escondido. Viu eles se desentenderem, um dizendo que o menino que tinham visto usava um gorro preto, o outro jurando que era vermelho. A briga que tiveram divertiu Exú. Pois é: o ‘tento’, bem divididinho em preto e vermelho, representa essa história antiga e o próprio Exú; ensina que a gente não sabe tudo das coisas, que é preciso respeitar a certeza dos outros e que, para arrumar uma confusão, basta ser turrão e de um caprichozinho da sorte”. 

Fiquei de olhos arregalados, encabulado sobre como, de uma sementinha, Tia Luzia conseguia tirar uma lição daquelas.