O Coletivo

Blog do escritor Juliano Rodrigues. Aberto a textos gostosos de quem quer que seja. Contato: julianorodrigues.escritor@gmail.com

terça-feira, 28 de março de 2017




 COLÓQUIO ENTRE IRMÃOS


Juliano B. Rodrigues.


Na penumbra do gabinete, iluminado apenas por uma luminária pendente, que incide a luz diretamente sobre o tabuleiro de xadrez na mesinha de centro, encontram-se, sentados frente a frente, duas figuras bem extravagantes. Lembram a história do primo pobre e o primo rico: um é elegante, usa um chapéu bicorne meio exagerado, terno alinhado, colarinho branco, calças de veludo, anelão de ouro e florezinhas de figueira-brava na lapela. O outro, mais mirrado, veste uma bata muito simples e calçolão parecendo de pijama. Calça sandálias gastas e tem um estilo displicente de vestir. Ambos barbudos, mas o primeiro com barba e cabelo impecavelmente aparados, enquanto o segundo 'ao natural'. São irmãos. Assim, e como estão sozinhos, conversam sem nenhuma cerimônia. O engomadinho, agarrado a um peão, começa o assunto sem levantar os olhos do jogo:

– Você supervaloriza essas criaturas.

– Não é isso, irmão. Cada um se apega ao que tem.

– São todos uns ingratos. Vivem comigo e depois falam mal de mim. Fazem suas porcarias e a culpa botam em quem? Em mim. E depois, com a cara mais deslavada, falam para Ele e para os outros que estão na sua, maninho.

– Sei disso, mas não fui eu quem os criou assim.

– Não venha tirar o corpo fora. Você pode não tê-los feito, mas me sacaneou feio naquela história de Novo Testamento. Os profetas que armaram sua vinda já me passavam a perna, mas a sua estratégia de marketing foi violenta: além de pintar minha caveira por escrito e fazer todos acreditarem que estou do lado oposto do Pai, ainda saiu de escolhido, de Filho de Deus.

– Lú, não seja rancoroso. Não fui eu quem escreveu a Bíblia. Você já tinha se dado mal com o Velho Testamento e vacilou, deixou que um Novo fosse feito. Demorou a ver que a ideia, que nem foi minha mas dos homens, de criar um roteiro fantástico nos mitificando, era ótima. Quer dizer, pelo menos foi para mim.

– Rapaz, você armou um complô tão infernal, que me escorraçou até da Trindade. Meteram um tal Espírito Santo no meu lugar. E olha que eu e você somos gêmeos idênticos, fomos criados juntos lá na origem. Daí você reaparece e apronta: brota no meio deles com um nome impactante, uma cara de anjo, um discurso inédito e bum! De repente, todo o prestígio é seu. E ainda me acusam de tentar usurpar o trono do Pai. Eu devia é ter aulas contigo.

– Seu ciúme é porque todos me amam, Lú.

– Isso é o que não entendo. Você é tão econômico nas suas benesses... Já eu, sou pródigo em divertir, estou em quase todos os prazeres, boto graça em tudo. É um tédio sua carolice.

– Pode ser, pode ser. E até acho que o problema talvez esteja aí. A maioria se aproveita tanto do que eu ofereço quanto do que você dá. O rebanho é corrupto, não há meus e seus, dividimos as mesmas cabeças. Fica difícil essa contabilidade e a prestação de contas.

– Então. O pior é que o trabalho tem sido muito mais meu. Te solicitam muito mais, mas quando vão para a ação, quando querem pôr a mão na massa, meter o pé na jaca, aí a coisa é comigo. Você sabe que até para ir além da natureza e fazer milagres minha ajuda é essencial. Não tenho um minuto de descanso. Salário então? Nem pensar. Pelo jeito, vou viver eternamente de mesada. Eu gostava quando me chamavam de deus da preguiça, mas isso é o que não sou faz tempo. Trabalho feito um burro de carga. E até hoje me condenam pela rebeliãozinha que causei tentando alcançar a coroa: quem aguenta viver sendo “braço esquerdo” a eternidade inteira, sem chance de promoção? Nem você, “braço direito”!

– Tá, e o que propõe, meu irmão? Fazer um piquete e dividir o rebanho meio a meio, ou deixar que se virem, ou pior: fazer logo um Apocalipse?

– O “Pai” não aceitaria nenhuma das três opções. Se não tivesse criado a porcaria do livre arbítrio, o plano ”a” até seria interessante. Mas eles escolheram servir tanto a mim quanto a você, e se aparecer mais um brilhante, seguem também. O saco é que nós dois nem servimos para sócios, você é luz que ilumina, eu sou luz que ofusca; você freia, eu acelero; você adula, eu castigo; você gosta da pasmaceira e eu quero é ver o circo pegar fogo; íamos quebrar. Mas é tããão chato vivermos disputando...

– Lú, não dá para te tirar de cena e nem você a mim. Se o Pai quisesse diferente não teria feito dois. Seja resignado.

– Tá vendo? Não suporto essa conversa de cordeirinho. Você ainda leva alguém com esse papo? Não que eu dê muita bola para o destino da humanidade, mas como disse você, é só o que temos. Preciso lucrar de algum modo.

– Solução? O que sugere?

Após alguns minutos de silêncio, Cristo e Lúcifer brindam, um com água outro com licor, se olham e dizem em uníssono, como fazem muitos univitelinos:

– Tem jeito não, joga nas mãos de Deus.

Levantam-se e saem rindo abraçados, naquele abraço fraterno de irmãos que se querem muito, ainda que tenham escolhido posições opostas.



Observação necessária: Embora seja o autor quem crie o narrador, este é um “ser” independente, às vezes com opiniões absolutamente opostas as do seu criador. Como o que escrevo já me surge pronto na cabeça, faço de tudo para não me meter na opinião do narrador, apenas modero minimamente a sua linguagem. No texto acima, quero deixar claro que as opiniões, crenças e conclusões são do narrador, não correspondendo em muita coisa com as minhas. O texto é ficcional. Não tenciono ofender qualquer crença ou religião, muito pelo contrário, sou defensor da liberdade religiosa e de credo e, mais que isso, da liberdade de opinião. A quem não tenha gostado, não leve a sério o texto, é mera ficção. Peço vênia: Arte é arte, feita para ser bela, romper com o cristalizado, extrapolar as velhas estruturas. Como já disse muitas vezes, 'valei-me a licença poética'.